A tragédia ocorrida no último dia 1º de maio, com o incêndio e desabamento de um prédio no centro da capital paulista, chamou a atenção para riscos existentes em Salvador em ocupações irregulares de imóveis abandonados.
Segundo o coordenador do Movimento dos Sem Teto de Salvador (MSTS), Idelmário Proença, na capital baiana há, pelo menos, quatro imóveis ocupados por diversas famílias que fazem parte do movimento.
Levantamento feito pelo jornal A Tarde em 2016 já apontava cerca de 500 imóveis abandonados, aproximadamente 200 em áreas do Centro Antigo. Se adequados, esses imóveis abrigariam cerca de 50 mil pessoas, caso todos esses espaços fossem reocupados.
Atualmente, os números não baixaram: de acordo com dados da Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Urbanismo (Sedur), são mais de 400 casarões e prédios abandonados na região do Centro Histórico e do Centro Antigo. A Defesa Civil (Codesal) realiza o projeto Casarões, que constatou que 143 imóveis apresentam risco muito alto nas estruturas; 123 têm risco alto; 65, risco médio; 78, risco baixo; e 28 estão fora de perigo de desabamento.
Com a desocupação desses imóveis, a cidade enfrenta diariamente o problema social da ocupação irregular, que não se restringe apenas a estes locais. Há ocupações em prédios e casas abandonadas de Cajazeiras, Estrada do Coqueiro Grande (entre Fazenda Grande II e III e Trobogy), em um condomínio que teve obras iniciadas em 2008, e que deviam ter terminado em 2011, além de localidades como a ladeira Água Brusca, entre outras.
Em nota, a Sedur informou que iniciou, última quinta-feira, a notificação dos donos de imóveis ocupados para a realização da manutenção, uma vez que, de acordo com o Código de Polícia Administrativa de Salvador (Lei 5503/99), é dever do proprietário zelar pela unidade imobiliária. Segundo a pasta, junto com a (Codesal) e a Secretaria de Promoção Social e Combate à Pobreza (Semps), foi iniciada ação para quantificar os imóveis ocupados irregularmente na cidade.
Movimento – Segundo Idelmário Proença, o MSTS iniciou as atividades em julho de 2003, no auge da crise habitacional, quando ocuparam o primeiro terreno na Estrada Velha do Aeroporto. Aproximadamente 472 famílias participaram da invasão, “motivadas pela falta de interesse social dos governantes e da prefeitura”. Conforme informou, 37 imóveis já foram ocupados desde então, com cerca de cinco mil famílias participantes.
Hoje, porém, o movimento assume a ocupação em quatro locais: duas invasões no Comércio, uma na avenida Jequitaia e outro na Calçada.
Sobre os riscos de viverem nestas ocupações, o coordenador diz que até hoje nada aconteceu por conta do cuidado das próprias famílias, “acostumadas a conviverem com o descaso das autoridades”. Idelmário diz que o MSTS recebeu apenas em 2008 uma única ajuda no final do mandato do governo do estado, que consistiu em um conjunto habitacional com 242 moradias no mesmo lugar ocupado tempos atrás pela primeira vez. Ele recorda um fato ocorrido ainda no início das ocupações, quando barracos pegaram fogo na Estrada Velha.`Por sorte, lembra, ninguém se feriu.
Dados oficiais – A Defesa Civil de Salvador (Codesal), diz não possuir dados referentes às ocupações irregulares citadas por Proença. Não possuem também ações, números, quantificação e nem o perfil dos ocupadores, e limitou-se a informar que realiza vistorias preventivas em qualquer imóvel de Salvador, e que as solicitações podem ser feitas na central 199, que funciona 24 horas.
Foram solicitadas informações ao Corpo de Bombeiros, mas até o fechamento desta edição não houve resposta.
Na ladeira da Montanha, abaixo do elevador Lacerda e da sede da prefeitura, uma cratera foi aberta na encosta que os sustentam. Dentro de um buraco, literalmente, vivem uma mulher e dois filhos. Ela pediu para não ser identificada por medo de ser desalojada, mas revelou que está há vários meses no local por falta de outro lugar para viver com os filhos.
Ela veio do interior em busca de uma vida melhor, mas se esbarrou nas dificuldades e burocracias. Perguntada se não tem medo de viver ali, ela disse: “Se desabar aqui, cai o elevador e a prefeitura também. Eu realmente não tenho para onde ir, não é por opção, tenha certeza”, e voltou a praticamente esconder-se no buraco improvisado.
Luís Gonzaga Alves Jesus, 56, é um dos fundadores do Movimento População de Rua. Ele revela que durante 25 anos esteve nas ruas e em ocupações. “Me criei na rua, invadi, ocupei, morei, por falta de opção. Foi muito difícil e continua sendo impossível definir em palavras tudo que passei”.
Nilza Castro de Olivira, 61 anos, vende água para conseguir o sustento. Não tem filhos, foi abandonada e define a experiência morando em ocupações como “assustadora”, até ser acolhida pelo Movimento Moradores de Rua. A ambulante afirmou conviver constantemente com o medo de perder a vida, por conta da falta de infraestrutura, higiene e condições básicas dos lugares que já ocupou.
“Passei muitas dificuldades e sofrimento. Tinha de pedir autorização para entrar e sair no prédio, não tinha liberdade. Passei fome, pois não podíamos entrar e sair por causa do tráfico”. Hoje, ela mora em um outro prédio, com apartamento improvisado, no bairro da Saúde, com piso revestido por madeiras, e paredes de tabico. “Tenho medo de pegar fogo porque a energia é gato. Tenho medo de qualquer hora perder a vida”.
O valor pago pelo lugar ela diz sair de um auxílio recebido de uma pastoral católica: “Estou com medo de perder esse benefício também, pois eu ganhava auxílio-aluguel pela Codesal, que depois cortou. Morei em um prédio na Saúde que não existe mais, por esse motivo cortaram”.
Aos 53 anos Sandra da Silva faz parte do Movimento Força Feminina (MFF), que realiza ações de acolhimento para ex-profissionais do sexo, antiga profissão dela. Abandonada ainda jovem pela família, ela morou nas ruas e de forma irregular em Recife, São Paulo e Salvador, onde vive atualmente, abrigada pelo MFF.
Nos prédios invadidos em que esteve, disse sair sempre por conta do “prazo de validade”. E explica: “Chega um momento que já não é mais possível morar no lugar. Lixo, fios, insegurança. O medo até de dormir”. Ela disse que já tentou recursos e programas do governo, sem sucesso. “Estou cansada de tanto tentar uma moradia, não consigo. O jeito será voltar a ocupar algum lugar junto a outras pessoas na mesma situação”.
A fragilidade e desconexão das políticas públicas é, na opinião da vereadora Aladilce Souza (PCdoB), uma das causas para esta situação. Segundo ela, o orçamento municipal de 2017 destinou R$ 116,1 milhões para a Semps.”Além de ser um baixo orçamento, quase metade dele é investido na área administrativa da pasta”, pontuou a parlamentar. Para ela, as possíveis soluções para a problemática resultariam de olhares amplos, focados nas políticas de prevenção e ações mais eficazes dos órgãos.
“Salvador é capital que tem o menor orçamento para atender a população nesta situação. É necessário que haja sensibilidade para dar atenção a estas pessoas. O que aconteceu em São Paulo pode acontecer aqui e não temos um monitoramento. Os órgãos públicos não estão fazendo esse monitoramento, nem tampouco oferecendo condições dignas para essas pessoas. São 30 anos da Constituição, mas nós estamos vivendo o rebaixamento das políticas sociais”, lamentou.