Reportagens, crônicas, livros; muitos deram pitacos sobre a gênese da revolução, que faz 60 anos nesta terça (10). Foi neste dia, em 1958, que João Gilberto gravou o compacto de “Chega de Saudade”. Exatos quatro meses depois, ele gravaria outro, “Desafinado”.
“Nunca antes um acontecimento no âmbito da nossa música popular trouxera tal acirramento”, descreveu o musicólogo Brasil Rocha Brito em ensaio publicado em “Balanço da Bossa e Outras Bossas” (Perspectiva, 1969), livro organizado pelo poeta Augusto de Campos. Este, aliás, identificava na inovação um misto de respeito à velha guarda e subversão da ordem estabelecida.
“O resultado é um livro de partido. Contra a Tradicional Família Musical. Não contra a Velha Guarda. Noel Rosa e Mário Reis estão muito mais próximos de João Gilberto do que supõe a TFM”, escreveu.
Já em seu “Música Popular, um Tema em Debate” (Editora 34, 1966), o crítico José Ramos Tinhorão reuniu textos publicados na imprensa nos quais detonava a novidade por sua suposta devoção à música americana.
“Filha de aventuras secretas de apartamento com a música norte-americana —que é, inegavelmente sua mãe—, a bossa nova vive até hoje o mesmo drama de tantas crianças de Copacabana: não sabe quem é o pai”, escreveu em um artigo, em 1963.
A leitura de Tinhorão foi influente nas primeiras décadas do pós-bossa —e sabe-se lá o quanto terá colaborado para o precoce ocaso do gênero, que dos anos 1970 aos 90 ficou praticamente restrito a espasmos no exterior.
Sob o benefício do tempo, contudo, essa genealogia ganhou revisões.
Para Ruy Castro, as análises que atribuem valor negativo à comunhão entre bossa nova e jazz derivam de equivocada negação da ordem mundial vigente desde a Primeira Guerra Mundial. Potência militar, econômica e cultural, os EUA disseminaram o gramofone e popularizaram até certos instrumentos, como o saxofone.
“Como qualquer música popular no século 20, ela foi influenciada pela sonoridade americana em geral, não pelo jazz especificamente”, diz.
O escritor e colunista da Folha ressalta ainda que o fato de o samba assimilar tão bem outras influências abriu margem para leituras equivocadas de que a bossa se escorava em um estrangeirismo. “‘Aquarela do Brasil’ (1939) já tinha uma big band de suingue no fundo, e ninguém se sente agredido por isso.”
Crítico de música erudita da Folha, Sidney Molina reforça a memória de que o contato do som brasileiro com o americano precede Gilberto-Jobim. “Os arranjadores brasileiros pré-bossa, como Radamés Gnattali, sabiam como funcionavam as big bands americanas, e Carmen Miranda já levara aos EUA violonistas como Garoto”.
Para ele, “não há purismo nacional nem gringo na bossa, ela é fusão; algum problema?”
Além de negar o furto de atributos do jazz, Ruy Castro crê que foram erradas tanto a leitura de que o estilo teria rompido com o samba-canção quanto a de que teria representado uma síntese ideal da música brasileira, análise embebida no ufanismo daquele Brasil que, sob a presidência (1956-1961) de Juscelino Kubitschek (1902-1976), vislumbrava um outro futuro.
“A bossa nova não veio de nada nem de ninguém, ela veio de si mesma; sua origem está na rica variedade da música brasileira.”
O jeito de cantar e tocar de João foi fruto, diz, da vontade de interpretar a seu modo suas canções preferidas: os sambas feitos a partir de “Jura”, tema escrito por Sinhô e gravado em 1928 por Mário Reis, espécie de batismo fonográfico do gênero.
Para demonstrá-lo, o escritor incluiu na quarta edição de seu livro “Chega de Saudade – a História e as Histórias da Bossa Nova” (Companhia das Letras, 1990), em 2016, um levantamento com mais de 600 canções desde o final dos anos 1920.
Autor de livros como “Copacabana – a Trajetória do Samba-Canção” (Editora 34, 2017), o jornalista e escritor Zuza Homem de Mello também nega a ideia de uma ruptura com as tradições.
“A bossa veio como um sucessor do samba-canção. Foi a solução encontrada pelo João para fazer o violão soar diferente dos outros violonistas.”
Uma evolução natural, portanto, que “simplificou o ritmo do samba e incrementou sua harmonia”, na síntese de Alessandro Borges Cordeiro, professor da Universidade de Brasília.
Autor do ensaio “Balanço da Bossa Nova” (1969), Julio Medaglia ressalta, por fim, que o nascimento da bossa conectava-se à arte da época.
“A economia de elementos lembrava a nouvelle vague: poucos atores, poucas falas e ações. Ecoava Niemeyer: tudo branco, simples, com poucas linhas. E também a poesia concreta: duas ou três palavras compondo um poema.”
Ele remonta o que sentiu ao ouvir pela primeira vez a aniversariante “Chega de Saudade”. “Eu me lembro até da rua em que estava quando senti o impacto desse bandido na minha alma. Foi uma implosão silenciosa.”
Cronologia da Bossa Nova:
1946 – Dick Farney (foto) grava a música “Copacabana”
1948/50 – Tom Jobim começa a tocar piano em boates da Zona Sul do Rio; João Gilberto se muda para a cidade e entra no grupo Garotos da Lua
1952 – João Gilberto grava seu primeiro compacto; no mesmo ano, Marisa Gata Mansa grava a composição dele “Você Esteve com Meu Bem?”, e Jobim se torna arranjador na gravadora Continental
1955 – João Gilberto deixa o Rio, cidade para onde Aloysio de Oliveira retorna após a morte de Carmen Miranda e o fim do grupo Bando da Lua, que acompanhava a cantora
1956 – Aloysio de Oliveira se torna diretor artístico da gravadora Odeon; no mesmo ano, Vinicius de Moraes e Tom Jobim são oficialmente apresentados e compõem “Chega de Saudade”
1957 – João Gilberto retorna ao Rio de Janeiro
mai.1958 – É lançado o disco “Canção do Amor Demais” (foto), de Elizeth Cardoso, tido como preâmbulo da bossa nova
1958 – Tom Jobim e Newton Mendonça compõem “Desafinado”, com o verso “isso é bossa nova, isso é muito natural”; João Gilberto grava os compactos “Chega de Saudade” e “Desafinado”
1959 – João Gilberto lança seu primeiro LP, “Chega de Saudade”; no mesmo ano, Sylvia Telles grava composições de Tom Jobim em “Amor de Gente Moça”
1962 – Tom, Vinicius e João fazem show juntos e tocam pela primeira vez “Garota de Ipanema”; o histórico show em Nova York apresenta o gênero aos EUA, e Stan Getz grava “Desafinado”
1963 – Tom Jobim, 36, estreia em disco solo nos EUA: “The Composer of Desafinado Plays”
1964 – João, Astrud e Stan Getz lançam “Getz/Gilberto”, que ficou dois anos em segundo nas paradas, atrás apenas dos Beatles