O número de casos de covid-19 subiu em ao menos 12 capitais brasileiras que deram início ao processo de retomada das atividades econômicas. Com o avanço pandemia e consequentemente o aumento da pressão sobre o sistema de saúde, algumas cidades já decidiram recuar da flexibilização e adotar medidas mais restritivas contra o coronavírus nos últimos dias.
Para fazer a análise, o Estadão levantou quantos novos casos foram registrados diariamente pelas capitais desde o início da pandemia, em março, com base em informações reunidas pela plataforma colaborativa Brasil.io. A reportagem comparou a média do fim de junho com a do momento em que a reabertura foi implementada em cada cidade, independentemente do grau de liberação, que varia de um local para outro.
O levantamento aponta que, após o retorno de atividades não essenciais, houve aumento da média de infectados por dia em São Paulo, Belo Horizonte e Vitória, na região Sudeste. No Sul, as três capitais também estão com mais casos: Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre. Outras cidades que sofreram alta são Brasília, Campo Grande e Cuiabá, no Centro-Oeste, além de Salvador e João Pessoa, no Nordeste, e de Palmas, na região Norte.
O aumento da covid-19 não é uniforme entre as capitais. Em São Paulo, cujo plano de reabertura gradual foi implementado pelo governador João Doria (PSDB) no início de junho, o número de casos diários subiu 15%, variação que não levou ao aumento de internações. Já em Brasília, onde o governador Ibaneis Rocha (MDB) reabriu o comércio no fim de maio, os índices quintuplicaram ao longo do mês passado.
Foram consideradas na análise 18 das 27 capitais brasileiras. Nos locais descartados, ou ainda não há plano de retomada dos setores econômicos ou as ações começaram há menos de duas semanas, tempo considerado necessário por especialistas para avaliar possíveis impactos das medidas. É nessa situação que se enquadram as cidades de Goiânia, no Centro-Oeste; Aracaju, Maceió, Natal, Teresina, no Nordeste; além de Boa Vista, Macapá, Porto Velho e Rio Branco, na região Norte.
Responsável por conduzir um estudo nacional sobre a propagação da doença, o epidemiologista Pedro Hallal, reitor da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), afirma que o avanço notado nessas capitais “é muito natural”. “A hora de flexibilizar é quando a curva estiver na descendente. Quando flexibiliza na ascendente, o problema cresce”, explica. “Se a gente impedir o contato entre quem tem o vírus e quem está pronto para receber, conseguimos colocar a curva para baixo e assim dá para começar a reabrir.”
O controle de casos é o primeiro de seis critérios listados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para uma transição e manutenção de um estado de baixa transmissão. “A incidência de novos casos deve ser mantida em um patamar que o sistema de saúde consiga lidar e com capacidade clínica substancial de reserva”, descreve o documento, lançado em abril. Segundo a OMS, para fazer a retomada com segurança a transmissão deve estar controlada a nível de casos esporádicos.
Em Brasília, quando o comércio foi reaberto havia 300 casos diários. Um mês depois, a média está em 1,5 mil novos diagnósticos a cada 24 horas. Mesmo diante da guinada, Ibaneis afirmou nesta semana, ao Estadão, que as restrições “não servem mais para nada” e assinou decreto liberando totalmente o comércio, a indústria e o retorno às aulas presenciais. “(A covid-19) vai ser tratada como uma gripe, como isso deveria ter sido tratado desde o início.”
Outro episódio emblemático é o de Belo Horizonte, mas lá o prefeito Alexandre Kalil (PSD) optou por abrir mão da flexibilização e voltou a só permitir serviços essenciais. O recuo aconteceu após o número de casos diários saltar de 30, com isolamento social, para 150 com a reabertura em maio de shoppings populares, atividades varejistas e salões de beleza. Em Minas, a taxa de ocupação de UTI bateu 88% na semana passada.
“Logo no início, a prefeitura rapidamente se articulou para fazer o distanciamento social e a curva foi crescendo bem devagarinho. Então veio a reabertura e a gente passou a ver uma escalada da curva, com ocupação significativa da rede pública de saúde”, diz a virologista Giliane de Souza Trindade, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Se não foi o relaxamento, o que mais poderia ter sido? O clima não mudou. A liberação é o único fator que destoa, não há outra explicação.”
Recuo também foi adotado em Porto Alegre, onde os casos dispararam um mês depois da liberação de diversos estabelecimentos, de comércios a igrejas. Lá, a média que era de cinco casos hoje está em mais de cem novos por dia. Em um mês, o índice de internações em UTI saltou 227% e atingiu o recorde de 141 pessoas internadas no início desta semana.
Em Curitiba, o comércio de rua voltou a funcionar ainda em abril, após a cidade registrar boa adesão ao isolamento social e taxa de infecção abaixo de 1, cenário considerado controlado da doença. Em maio, foi a vez de liberar shoppings e academias. Em junho, no entanto, o número de casos disparou e o prefeito Rafael Greca (DEM) decidiu retroceder a flexibilização, voltando a suspender as atividades.
Para o pesquisador Emanuel Maltempi de Souza, presidente da Comissão de Enfrentamento e Prevenção à Covid-19 da Universidade Federal do Paraná (UFPR), a abertura pode ter sido precipitada. “A taxa de transmissão ficou abaixo de 1 por pouco mais de uma semana. Talvez, tivesse de esperar mais umas três semanas para cristalizar. Desde então a curva foi crescendo exponencialmente mas, por serem poucos casos absolutos no início, é difícil de perceber esse comportamento até a hora que atinge uma dimensão espantosa”, diz. “Chegou o momento em que é preciso tomar uma atitude enérgica para evitar a sobrecarga no sistema de saúde.”
Mais casos exigem mais do sistema de saúde. Pedro Hallal explica a relação. “Na prática, se houver cem pessoas doentes, em média dez vão precisar de atendimento especializado. Essa porcentagem não muda, mas se o número de doentes for muito maior, logo a quantidade de pessoas que vão precisar de UTI também vai subir. Em um cenário extremo com escassez de estrutura, os profissionais precisam decidir para qual dos pacientes vai o leito”, disse.
O avanço dos casos também reflete maior capacidade para realização de testes por parte das cidades. Há também localidades onde são realizados mutirões para diagnóstico. Na Bahia, o governo justificou um aumento recente de casos a uma mudança no formato de validação das notificações, o que teria feita os registros diários saltarem.
Apesar disso, mais testes não explicam completamente a variação, uma vez que ela também é notada na quantidade de óbitos registrados em decorrência do coronavírus. Em Salvador, as mortes passaram de 20 para 30 a cada 24 horas, em média, desde a reabertura. Em Brasília, as 15 mortes diárias são o dobro da data da retomada. E em Belo Horizonte, os óbitos passaram de um para cinco por dia.
Fogem ao padrão de aumento cidades que vivenciaram o pico da pandemia durante o mês de maio e adotaram medidas rígidas de isolamento na ocasião, só retomando as atividades após algum controle sobre a propagação. Nesses locais, a reabertura vigente há mais de um mês não mostram elevação nos novos casos. Ao contrário, há redução dia a dia, segundo o levantamento.
É o caso de Manaus, São Luís, Recife e Fortaleza – exceto a primeira, em todas o governo local chegou a decretar bloqueio completo das atividades, o chamado lockdown. Nas quatro cidades, os novos casos diários estão em queda de mais de 50% em relação ao dia da reabertura. Na capital do Maranhão, por exemplo, os 50 novos infectados representam uma redução de cerca de 80% ante os 300 infectados confirmados diariamente durante o pico de maio.
Outra capital com recuo na média de infectados é Belém, que também chegou a ter lockdown e hoje registra redução de 24% nos novos casos. O Rio de Janeiro, embora tenha registrado aumento de casos logo após a reabertura, fecha a lista de cidades que encerraram a última semana com menos diagnósticos de coronavírus.
O médico epidemiologista da USP e do Instituto de Saúde de Barcelona Otavio Ranzani explica que o marco de encerramento da primeira onda de infecções se caracteriza pela diminuição do nível de transmissão comunitária da doença. “Esse seria o principal parâmetro. Também temos outras coisas indiretas, como diminuição de internações e busca por atendimento de casos leves. A estrutura hospitalar deve estar organizada, com gestão de leitos. Um problema de não terminar a primeira onda é surgir a segunda no meio, ou múltiplas extensões da primeira”, disse.
Para Ranzani, as capitais que mantiveram o isolamento “até uma supressão maior da transmissão parecem ter sido mais cautelosas e agora conseguem obter melhor os resultados da intervenção”. “Esse padrão segue muito o que a maioria das capitais europeias fizeram: reabrir somente quando a transmissão já estava mais baixa por um tempo maior”, explicou.
Ele vê o país, a depender do foco por região, em diferentes momentos da pandemia. “Acho bastante difícil ter uma avaliação única da pandemia no Brasil, pelo fato de sermos um país com dimensões continentais em tamanho, em extensão de clima, e, principalmente, começo da pandemia em diferentes locais. Com os dados que temos, mesmo com suas limitações, acho que o País como um todo está em diferentes fases e alguns Estados parecem estar, na verdade, em franca ascensão”, acrescentou.
A Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo não mencionou os dados de novos casos na cidade na resposta enviada à reportagem. Em junho, foram 67 mil confirmações (60% a mais que em maio), maior patamar mensal da pandemia, mas uma aceleração menor do que havia sido constatada em maio (160% maior que abril). A curva menos acentuada habilitaria a reabertura. A pasta disse ter observado queda no número médio de pedidos de internação após a retomada gradual das atividades.
“No dia 21 de maio, foram registradas 52 solicitações. Já no dia 22 de junho, foram feitos 14 pedidos para internação em leito de UTI covid-19. No fim de abril, o número de solicitações diárias para internações em leitos de UTI e enfermaria chegou a 350”, destacou. “Esses dados, aliados ao aumento da oferta de vagas, resultou também na redução da ocupação de leitos de UTI covid-19 na cidade, a média da taxa de ocupação de leitos de UTI covid (rede municipal) nos últimos 7 dias foi de 59%, após ultrapassar 90% no mês passado”, acrescentou a pasta.
Já a Secretaria de Saúde de Belo Horizonte, onde casos e internações estão em alta, avalia que, “enquanto não surgir vacina”, a cidade “terá de conviver com reaberturas e fechamentos do comércio, dependendo dos níveis de avaliação”. A pasta disse acompanhar três indicadores para definir a reabertura gradual do comércio: ocupação de leitos de UTI covid, de enfermaria e taxa de transmissão. “Vale destacar que, segundo dados nacionais do coronavírus no Ministério da Saúde, entre as 17 cidades com mais de 1 milhão de habitantes no País, BH (2,5 milhões) é a que tem menos mortes (seis) por 100 mil habitantes.”
A prefeitura de Curitiba disse que a cidade segue a tendência da Região Sul, onde a onda de casos chegou tardiamente. “Como as medidas restritivas começaram bem no início da pandemia na cidade, houve grande adesão da população naquele momento. Com o passar do tempo, a pressão econômica pesando e o cenário mais confortável nos indicadores, percebemos o relaxamento das medidas”, declarou.
A administração municipal da capital paranaense disse não ter havido nada de errado no processo de reabertura que culminou no aumento de casos e reforçou que as estratégias levam em consideração monitoramento diário da propagação da doença e da capacidade de atendimento do serviço de saúde. A secretaria curitibana apontou ainda a chegada do inverno, “que é bem rigoroso”, como um dos fatores a serem levados em consideração, pois é um “período em que naturalmente temos mais casos de síndromes respiratórias”.
A prefeitura de Porto Alegre anunciou na sexta-feira passada que, a partir desta segunda, vai suspender atividades em igrejas, salões de beleza e academias, além de fechar o acesso a parques. O município também tem feito apelos para elevar a taxa de isolamento social.