A cultura popular está cada vez mais próxima da Academia de Letras da Bahia – ALB e a eleição de Maria Bethânia, nesta segunda (11), atesta isso. A baiana, dama da MPB, foi eleita em primeiro turno e era candidata única. O presidente da entidade, Ordep Serra, comenta a importância dessa aproximação das letras com as outras artes: “A Academia não é só de literatura. Temos, por exemplo, uma grande dançarina, como membro, que é Lia Robatto. Temos também um compositor erudito, Paulo Costa Lima. Temos juristas, artistas plásticos, historiadores…”.
Ordep, que é antropólogo, tinha motivo especial para estar emocionado, afinal já teve uma música gravada por Bethânia, Louvação a Oxum. “Ela é filha de Oyá e sou ogum de Oyá. Tenho uma admiração por ela e, como muitos disseram na eleição, ela é intérprete de muitos poetas e ganhou o Prêmio Fernando Pessoa pela maneira maravilhosa como interpreta poesia”, disse o presidente.
A cantora, que vai ocupar a cadeira 18 – que era de Waldir Freitas Oliveira – foi comunicada na tarde de segunda-feira (11) sobre a aprovação de seu nome, em uma cerimônia virtual. “Salve, minha sagrada Bahia, meu Senhor do Bonfim, minha Nossa Senhora, minha mãe Oyá! É uma imensa hora para mim, uma imensa alegria para uma cantora popular nascida no Recôncavo Baiano e sempre a serviço do coração do povo brasileiro”, disse Bethânia.
Criadora – Mas não é apenas a conhecida ligação com a poesia que justifica a eleição de Bethânia, como observa o compositor Paulo Costa Lima, proponente da candidatura da cantora. “Ela tem um importante trabalho de difusão da literatura. Mas como argumento principal digo que ela é uma criadora de personagens de voz. A criação da interpretação dela é um texto”, defende o acadêmico.
Para comprovar sua tese, Paulo cita como exemplo a interpretação de Bethânia para Olhos nos Olhos, de Chico Buarque: “Ela cria a cena de uma mulher na saga do amor e, em termos de música, ela faz isso ligando e separando as palavras ao mesmo tempo. Com sua técnica, ela cria um personagem da voz, o que é um conceito relativamente novo”.
Outra integrante da Academia de Letras da Bahia, a escritora e professora Edilene Dias Matos, também é entusiasta da escolha. “Bethânia pensa este país e é com grande alegria que a Academia recebe esta cantora, intérprete que tem forte ligação com as raízes populares, com o cancioneiro popular. É uma artista da ‘arte total’, como diz Jorge Mautner”, afirma Edilene.
Edilene chama a atenção ainda para a forma “teatralizante” de apresentação de Bethânia: “Ela passa pelo conceito do teatro e me refiro à bricolagem que ela realiza, do trabalho de citação. Ela cita com todos os detalhes os passos de uma longa jornada de um teatro musicalizado”.
O escritor Marcus Vinicius Rodrigues foi outro que aprovou a nova colega: “Bethânia sempre existiu para mim como horizonte e sempre fui inspirado por ela. Ela inspirou diversas gerações de brasileiros, é uma divulgadora de literatura, uma personalidade indiscutível na cultura brasileira”.
Mulheres – Para Edilene, o ingresso de Bethânia na ALB significa mais uma batalha vencida na luta contra o machismo: “A primeira mulher eleita para a ALB foi Edith Mendes da Gama e Abreu, em 1937 [20 anos após a fundação]. Ela era feminista e tomou posse com um discurso belíssimo. Mas muitos homens passaram a não frequentar a Academia depois da posse dela. O nome de Bethânia pode não ter sido escolhido exatamente por ela ser mulher, mais isso pode ter colaborado”, reconhece.
Ordep Serra também assume que a ALB já foi machista e tem se esforçado para mudar isso: “Ela foi muito androcêntrica. Quando soube da reação dos homens à posse de Edith Mendes da Gama e Abreu, eu decidi criar uma tribuna com o nome dela na Academia. Ali, só se pronunciam mulheres.
E para inaugurar a tribuna, fizemos questão de chamar três mulheres, porque soubemos que elas preferem se expressar coletivamente”.
O presidente defende que uma academia tem o papel de combater o obscurantismo e a indicação de Bethânia contribui para esse combate. “Estamos atentos a todo tipo de preconceito e nossa função é promover a difusão da cultura. A Academia não pode ficar isolada olhando para o próprio umbigo: tem que dialogar com as questões sociais”, garante.
Podcast – A relação da artista com a literatura deu origem ao podcast Tabuleiro, que vai intercalar poesia e música, aproximando canções a textos literários selecionados por ela e pelo poeta Eucanaã Ferraz. Serão seis episódios semanais disponibilizados na rádio Batuta, hospedada no site do Instituto Moreira Salles, a partir de 4 de novembro. O acesso é gratuito. A estreia será centrada em Clarice Lispector, por quem Bethânia já demonstrou sua admiração, por exemplo, incluindo textos seus em algumas gravações.