O Cardeal Dom Sergio da Rocha presidirá na próxima quarta-feira, 19 de julho, a Santa Missa em memória dos 308 anos da morte da Serva de Deus Vitória da Encarnação, cuja causa de beatificação e de canonização está sob os cuidados da Arquidiocese de São Salvador da Bahia, com o apoio das Clarissas. A Celebração Eucarística terá início às 10h, no Convento Santa Clara do Desterro, em Nazaré, Salvador, local onde a religiosa viveu e morreu com fama de santidade.
Serva de Deus
Madre Vitória da Encarnação nasceu na cidade de Salvador, então capital do Brasil colonial, em 6 de março de 1661, sendo batizada no mesmo ano na antiga Sé da Bahia. Foram seus pais Bartolomeu Nabo Correia e Luísa Bixarxe. Teve um irmão e três irmãs. Conforme escreveu Dom Sebastião Monteiro da Vide (1720), a casa desta família era um exemplo de lar cristão.
Em 1675, quando Vitória estava com 14 anos, seu pai desejou enviá-la, juntamente com sua irmã mais velha, Maria da Conceição, para um convento nos Açores, em Portugal, porém a menina se recusou, dizendo que preferia que lhe cortassem a cabeça do que ser enviada para um convento.
Em 1677, quando foi fundado o primeiro convento feminino no Brasil, o Convento de Santa Clara do Desterro da Bahia, a menina, então com 16 anos de idade, havia se tornado avessa à religião, preocupando seus pais com o seu comportamento.
Vivia em Salvador, naquela época, um jesuíta de muita piedade a quem o povo venerava como santo já em vida e tinha fama de ser um profeta, o padre João de Paiva. Foi a ele que o pai da menina Vitória recorreu aflito ao perceber que sua filha havia tomado aversão às coisas sagradas, pedindo ao padre que rezasse por ela. O padre João o acalmou dizendo que a menina seria, no futuro, uma grande religiosa.
Passaram-se alguns anos e Vitória começou a ter frequentes sonhos com a Mãe de Deus e seu Divino Filho. Neles a Virgem lhe apresentava o Menino e chamava-a para a vida consagrada. Em outros momentos via o Divino Menino a colher flores no caminho para o convento e a chamava para lá. Tais sonhos se repetiram inúmeras vezes, porém, Vitória não quis seguir o que a Virgem e o Menino pediam.
Numa terrível noite do ano de 1686, quando Vitória estava com 25 anos de idade, teve um sonho horrendo, no qual se via nos porões sujos e cheios de lodo de uma grande embarcação que navegava em alto mar. Viu neste sonho que estava acompanhada de pessoas impiedosas que caminhavam para a perdição. Enquanto que na parte de cima da embarcação haviam muitos religiosos contentes, pois caminhavam para a salvação. Seu Anjo da Guarda então lhe explicou que os navegantes da parte superior eram os que faziam a vontade de Deus e estavam salvos, enquanto que os que estavam nos porões, assim como ela, eram os que caminhavam para a perdição. Ao acordar deste sonho aterrorizador, pensou em sua vida e tomou a firme decisão de consagrar-se totalmente a Deus e passar a vida fazendo Sua santa vontade. E naquele mesmo ano, num domingo pela manhã, em 29 de setembro, dia de São Miguel Arcanjo, Vitória foi acolhida no noviciado das monjas Clarissas do Convento do Desterro da Bahia e, juntamente com ela, foi acolhida também a sua irmã, Maria da Conceição. Recebeu neste dia o nome religioso de Vitória da Encarnação. Conforme seu desejo, fez profissão Solene em 21 de outubro de 1687, dia em que se celebrava na cidade de Salvador a festa das Onze Mil Virgens.
Mostrou-se grande em suas virtudes. Desapegada de tudo o que é mundano, quis fazer-se a menor de todas e aquela que servia a todas. Dotada de imensa caridade para com os mais desvalidos, desejou viver como uma escrava e adotou para si o estilo de vida das servas que viviam no mosteiro. Fazia suas refeições sentada no chão, como era costume entre os escravos da época, corria para fazer os trabalhos que ninguém queria, e por querer ser a menor de todas, foi diversas vezes ridicularizada e agredida pelas próprias escravas a quem ela tanto quis se fazer igual. Cuidava daquelas que adoeciam, levando-as para sua própria cela e de lá só saiam quando completamente curadas. Suportou diversas humilhações calada e com paciência, pois considerava-se digna de todas aquelas ofensas.
Viveu inteiramente dedicada aos pobres, doentes e desamparados que procuravam o mosteiro em busca de socorro. Pela sua grande caridade recebeu dos pobres o apelido de “madre esmoler”. Quando exercia o cargo de porteira, grande quantidade de pessoas dirigia-se à portaria para pedir-lhe algum auxílio. Atendeu a todos quantos podia e, mesmo de dentro da clausura, recomendava aos parentes que cuidassem daqueles pobres e doentes de quem vinha a saber que estavam necessitados. Doou em vida tudo o que possuía aos pobres, inclusive a cama na qual dormia, passando então a dormir no chão sobre uma esteira de palha. Por esse motivo, não morreu em sua própria cela. Quando estava prestes a falecer foi levada para a cela de outra monja, pois suas coirmãs não quiseram deixá-la morrer no chão.
Dotada de dons místicos, se transfigurava quando fazia a via-sacra, todas as sextas-feiras do ano. Um desses eventos foi testemunhado pelas outras religiosas quando participavam de uma procissão do Senhor Bom Jesus dos Passos no corredor da clausura, e foi narrado por Dom Sebastião em seu livro. Conforme o mesmo escreveu, _“brotavam nas faces duas rosas, com cuja púrpura avivando-se o desmaiado e penitente do rosto, arrebatava as atenções das que a viam, não podendo reprimir as lágrimas da devoção que lhes causava esta devota penitente”._
Tinha tanto desejo de imitar ao Divino Esposo em seus sofrimentos, que castigava-se com cilícios e disciplinas duríssimas, chegando a converter os pecadores que passavam pela via próxima ao convento e que ouviam o barulho daquelas chibatadas. Fazia rigorosos jejuns e quando comia algo que lhe agradava o paladar, misturava cinzas à comida para estragar o sabor.
Em uma noite, viu o Senhor a andar pelo corredor com sua pesada cruz às costas. Ao encontrá-lo, Ele disse-lhe: “Esposa minha, vem e segue meus passos”. Desde então começou a carregar uma grande cruz às costas durante as madrugadas das sextas-feiras. Foi a Madre Vitória a responsável pela difusão da devoção ao Senhor Bom Jesus dos Passos na cidade de Salvador e mandou construir dentro da clausura do mosteiro uma capela a Ele dedicada.
Amou tanto as almas do purgatório que sufragava-as diariamente com orações e oferecia-lhes todas as missas em seu favor. Conforme narrou seu biógrafo, muitas almas se mostraram a ela em seus sofrimentos no purgatório e também voltavam para agradecer-lhe pelas orações em seu favor, quando de lá saíam para o Céu, resplandecentes de luz.
Tinha o dom da revelação e da profecia. Era capaz de saber o local exato em que uma pessoa, tida por desaparecida, se encontrava, assim como de prever acontecimentos futuros. Chegou a descrever eventos que aconteceriam por ocasião e após sua morte. Tinha também a capacidade de encontrar objetos e animais desaparecidos. Passava a amaior parte da noite em vigília diante do Santíssimo Sacramento e foi chamada, pelo seu biógrafo, Dom Sebastião, de “tocha acesa diante do sacrário”.
Teve por companheiras mais próximas em seus exercícios penitenciais duas outras monjas, também biografadas por fama de santidade, a saber, Madre Maria da Soledade e Madre Margarida da Coluna. Era frequentemente tentada pelo demônio por meio de visões aterrorizantes e desses terríveis combates espirituais sempre saía vitoriosa. Alguns deles ocorreram quando estava junto à estas companheiras. Em um deles a Madre Maria da Soledade foi lançada de cima do coro para baixo sem sofrer muitos danos físicos.
Sentindo que se aproximava o dia de sua morte fez diversas recomendações às suas Irmãs. Uma delas foi o pedido de ser levada à sepultura pelas mãos das servas a quem ela tanto amava. Outro pedido feito foi o de não ser enterrada com o hábito que usava em vida, pois não queria levar para o túmulo nada que tivesse lhe pertencido neste mundo e pediu que cada uma das Irmãs doasse a ela uma peça do hábito religioso com o qual ela seria enterrada.
Após 29 anos de clausura e de total consagração de sua vida à Cristo e ao próximo, faleceu numa sexta-feira, às 15 horas, 19 de julho de 1715, acompanhada do padre e das Irmãs que a assistiam. No momento de sua morte as religiosas disseram ter sentido uma maravilhosa fragrância de rosas a inundar as dependências do mosteiro. E durante o Rito das Exéquias um misterioso passarinho foi visto voando pelos corredores do convento numa velocidade jamais vista para um pássaro comum. Os que ali se encontravam narraram este fato a que Dom Sebastião dissera ser “a alma da Madre Vitória voando para as mansões celestiais”.
Ao se espalhar a notícia de sua morte, uma grande multidão se aglomerou diante do convento. Logo toda a cidade ficou a saber, pois diziam ter morrido a “santa da Bahia”. Muitos levavam lenços, medalhas, terços e outros objetos e pediam que as religiosas os tocassem no corpo da “santa”. Esses objetos eram guardados por essas pessoas e eram tidos como verdadeiras relíquias. Como a quantidade de pessoas às portas do convento crescia cada vez mais durante aquela noite, e não paravam de chamar pelas religiosas para que tocassem seus objetos ao corpo da madre, e as Irmãs se viram obrigadas a não mais saírem à portaria e não puderam atender mais a nenhum deles.
Seu corpo foi velado durante toda a noite na capela que a mesma havia mandado construir em honra ao Senhor dos Passos, e foi enterrado no dia seguinte no cemitério do convento. Ao tentar levar o corpo para a sepultura, o esquife tornou-se tão pesado que não se movia do lugar e as Irmãs não o puderam carregar. Ao se lembrarem do pedido da madre de que fosse levada à sepultura pelas escravas, chamaram-nas para que levassem o corpo. Quando estas levantaram o esquife, parecia não haver nele corpo algum, pois o mesmo estava leve como que quase sem peso.
Inúmeros foram os milagres narrados pelos seus devotos logo após sua morte. Sendo crescente o número desses supostos milagres, o então Arcebispo da Bahia tratou de interrogar as religiosas do Desterro sobre a vida que teve a Madre Vitória. Em 1720, apenas cinco anos após a sua morte, Dom Sebastião Monteiro da Vide publicou em Roma a biografia da “santa da Bahia” com o título “História da Vida e Morte da Madre Soror Victória da Encarnação”.
O zeloso Arcebispo jesuíta pretendia solicitar a abertura da sua causa de beatificação e chegou a compará-la à Santa Rosa de Lima. Porém, ele faleceu em 1722. Anos mais tarde, com a perseguição do Marquês de Pombal aos Jesuítas e a proibição de muitos dos seus escritos no Brasil, diversos livros se perderam. Isso dificultou a difusão da sua história. Mas a memória da Madre Vitória não se apagou dentro do convento em que viveu, nem nas mentes daqueles que pela tradição oral ou pelos poucos escritos que restaram, conseguiram saber da sua vida. E muitos ainda esperam vê-la elevada à honra dos altares.
Seus restos mortais encontram-se na Igreja do Convento de Santa Clara do Desterro e estão depositados acima de uma das portas que ligam o coro de baixo à nave da Igreja.
Fama de santidade
Entre as virtudes apontadas, em relatos, sobre a Madre Vitória da Encarnação, algumas se destacam. Uma delas era o dom que ela tinha de sonhar com as pessoas necessitadas e, em seguida, enviar ajuda. A Madre também era procurada quando as Irmãs do convento – enclausuradas – recorriam para encontrar objetos perdidos.
A causa da beatificação possui um postulador, que atua como uma espécie de advogado e tem a missão de investigar a vida do candidato à beatificação para verificar seu testemunho de vida e de santidade. No caso da Serva de Deus Vitória da Encarnação, o postulador da causa da beatificação é o frei Jociel Gomes, OFMCap. Ao ser iniciado o processo, em 2019, começaram oficialmente os estudos históricos sobre a época em que a religiosa viveu e a busca por documentos relativos a ela como, por exemplo, o diário do Convento, possíveis cartas ou testemunhos.
Texto: Setor de Comunicação da Arquidiocese de Salvador com informações históricas enviadas pelo professor Thiago da Matta.
Foto: Divulgação/Pascom da Arquidiocese de Salvador