29 de março de 2024
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Filho de pedreiro e empregada faz “vaquinha” para estudar em Harvard

Filho de pedreiro e empregada faz “vaquinha” para estudar em Harvard

Filho de pedreiro e empregada doméstica, Rafael José da Silva, 19, foi selecionado para um concorrido intercâmbio com duração de um ano na Harvard Medical School, em Boston, nos Estados Unidos. A universidade norte-americana ofereceu 17 vagas, para as quais mais de cem estudantes se candidataram –a seleção não é feita por prova e comporta uma análise ampla, de experiências como estudante e pessoais.

Com renda familiar de, em média, 2,5 salários mínimos por mês, o estudante da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) poderia ter desistido da vaga. Mas encontrou outra solução. Sem recursos para bancar passagem, seguro-saúde, alimentação e estadia, ele abriu no dia 10 de outubro uma campanha na plataforma de financiamento coletivo Catarse. A meta era arrecadar R$ 50 mil até 31 de dezembro.

Em apenas dez dias, ele conseguiu financiar a empreitada –o valor reunido até quinta-feira (2) era de R$ 86 mil, entre 948 apoiadores. As doações começavam em R$ 20 e não havia limite máximo. Como recompensa, nenhum prêmio gigantesco, apenas um agradecimento pessoal e fotos. Onze pessoas doaram R$ 1.000, mas a grande maioria foram valores menores.

“Fiquei muito surpreso com tamanho apoio. Eu não esperava atingir a meta tão rápido. Outros estudantes que passaram no mesmo intercâmbio anos antes tentaram arrecadar R$ 20 mil e demoraram dois, três meses. Só tenho a agradecer”, disse o universitário.

Com o excedente, Silva pode dispensar o auxílio mensal dos pais e ainda vai ajudar a bancar sua formatura.
Sonho de ser médico veio por causa do câncer da avó

Natural de Blumenau (SC), sempre estudou na Escola Estadual Santos Dumont, onde colecionou notas altas ao longo do ensino fundamental e médio. A escola está situada na rua Amazonas, onde Silva nasceu e morou até ir para São Paulo. Tem 1.435 alunos e uma média de 510,7 no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), um pouco acima da média nacional, de 492,4. O jovem diz que a escola ofereceu a base e que ele buscou aprofundá-la.

Um dos motivos foi o episódio triste que viveu ao lado da avó Olindina, a quem era muito apegado. Ela foi diagnosticada com câncer quando ele tinha 13 anos. O sofrido processo da doença despertou no estudante a vontade de ser médico.

“Eu sempre tive muita curiosidade pelo funcionamento do corpo humano, as doenças e as curas. Com o câncer da minha avó, a medicina se tornou um destino natural para mim”, explicou.

A mãe dele, Valdirene da Silva, 47, contou que com apenas quatro anos de idade o menino já entrava em sebos da cidade e pedia livros grossos de anatomia. “Não queria brinquedo, só livros. Era engraçado voltar dos sebos com ele segurando um livro grosso embaixo do braço. Chamava a atenção”, lembra.

Aos dez anos, comprava tubos de ensaio para brincar com os amigos de laboratório. Gostava de se imaginar cientista.
“Foi a 1ª vez de avião, não sabia comprar passagem”

Decidido a fazer medicina, Silva logo definiu a instituição onde iria estudar: a USP (Universidade de São Paulo). Sem recursos para um cursinho pré-vestibular, desenvolveu um método para encarar a prova da Fuvest, uma das mais concorridas do país.

“Organizei um cronograma e comecei a estudar todo o conteúdo do edital. Baixava e fazia provas dos anos anteriores e trocava informações com quem já tinha passado no vestibular”, disse.

“Eu e meu marido saíamos para trabalhar e ele estava estudando no quarto. Quando voltávamos, à noite, ele ainda estava lá, ralando”, contou a mãe.

Tamanho esforço sensibilizou Valdirene, que sacrificou uma parte das economias e pagou uma passagem de avião e estadia em um hotel em São Paulo para ela, o marido e o filho durante o período das provas.

“Foi a primeira vez que viajamos de avião, eu nem sabia comprar a passagem. Mas achei que um pouco de conforto ia deixá-lo mais relaxado para fazer os exames”, contou Valdirene.

A “operação família” deu certo e o jovem foi aprovado entre os primeiros lugares, com apenas 17 anos.

“Sou muito grato aos meus pais. Eles não têm ensino superior, mas sempre me apoiaram a estudar. Chegavam em casa cansados e faziam os deveres de casa comigo. Quando eu desanimava, eles me incentivavam a continuar.”
“Investir nos estudantes é investir no futuro”

Devidamente matriculado na FMUSP e instalado na Casa do Estudante de Medicina –um alojamento fornecido pela faculdade para pessoas em condições de vulnerabilidade social–, Silva não parou de sonhar alto: agora queria ser selecionado para o intercâmbio na Harvard Medical School.

A parceria entre a faculdade de medicina paulista e Harvard existe há mais de dez anos, ajudou na formação de 92 estudantes brasileiros e rendeu mais de cem publicações científicas. John Godleski, um dos fundadores do programa, explicou que o principal benefício é a total imersão nos jovens na pesquisa.

No Catarse, Silva escreveu que, “antes mesmo de entrar na faculdade de medicina, quando eu estava no ensino médio, já conhecia o programa de intercâmbio para Harvard e as histórias de alguns estudantes que nele puderam participar”.

“Da mesma forma como as histórias deles me inspiraram a buscar seguir uma carreira de excelência e a fazer pesquisa científica, minha história pode servir de inspiração a muitos outros jovens com grande potencial em nosso país. Investir nos estudantes é investir no futuro.”

Em dois anos de curso na FMUSP, participou de extensas atividades extracurriculares, de monitoria e se tornou tutor no MedEnsina, um cursinho pré-vestibular voluntário organizado por alunos para ajudar jovens sem condições de bancar aulas privadas.

O bom desempenho e as experiências pessoais chamaram a atenção da instituição americana e, no dia 27 de setembro, Silva recebeu a confirmação no intercâmbio. Em uma carta, o chefe do Center for Interdisciplinary Cardiovascular Sciences, Masanori Aikawa, disse ter gostado do seu perfil.

Em Boston, o estudante vai trabalhar em uma pesquisa na área de cardiologia sobre aterosclerose –desenvolvimento de placas de gorduras nas artérias do corpo que pode causar doenças como infarto agudo do miocárdio e acidente vascular cerebral (AVC), duas das principais causas de mortalidade no Brasil.

Com o dinheiro garantido, Silva já deve viajar no final de janeiro do ano que vem.




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