20 de abril de 2024
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Coluna Literária: “Sorte na rifa” – por Pacheco Maia

Coluna Literária: “Sorte na rifa” – por Pacheco Maia

Ele não dava mesmo sorte na Mega-Sena. Gastara uma grana em bolões da Virada e nada. No máximo um terno que não premia. Nem uma quadrinha para compensar o dispêndio infrutífero.

Mas a lembrança da história que lhe contara um amigo lhe dava um bom motivo para exercitar seus pendores literários. O amigo tirou a sorte grande, mas não foi na mega sena.

“Porra de mega sena! Eu aposto mesmo é nas rifas”. Contava entusiasmado o amigo.

“Rifa? Não vá me dizer que é daquelas com nomes, que se compra já sabendo o sorteado?”, perguntou.

“Porra nenhuma! Corre pela Federal. Você nunca viu, não, umas meninas com pranchetas na mão oferecendo rifas, com prêmios correspondentes a quanto se aposta?”

“Rapaz…”

“Você é da elite. Não circula na periferia. Tem escritório em prédio bacana, na Tancredo Neves. O meu escritório de contabilidade é aqui, no Engenho Velho de Brotas. Você não vivencia essas cenas do cotidiano.”

“Sim. E daí? Colé o caso?”

“O caso é que, enquanto você toma seu expresso no ar condicionado, eu desço pra rua e vou ao boteco tomar uma gelada. E aí a vida acontece, irmão!”

Falou e ficou absorto, como tivesse se transportado para outra dimensão. Os olhos enxergavam algo vivido que davam contornos de alegria a sua face. Rindo, ele voltou à conversa.

“Que mulata! E era jovenzinha. Uns 20 anos. Aquela pele de tom marrom, café com leite na medida. E o sorriso? Uma boca carnuda de onde brotavam belos dentes alvíssimos. Vou ficar por aí, por enquanto, para você não se excitar”, disse, soltando uma gargalhada.
“Deixe de onda. Desembrulha isso logo! Daqui a pouco, precisarei voltar ao escritório para atender um cliente”.

Pressionou, senão o amigo passaria mais de uma hora enrolando. Daria o horário de ir embora e não saberia o desfecho da história.

“Pois é, você vive naquela sua bolha. Dificilmente aparece para rever o amigo e perde de viver boas histórias. Então, tá vendo aquele grupo de meninas ali fora. Observe cada uma delas está se dirigindo a alguém para oferecer as rifas. Veja! O verdureiro tá desembolsando 10 contos. Vai apostar para tentar ganhar 200.”

Era um grupo de quatro garotas, com idade entre 18 e 20 anos, possivelmente até menos. Trajavam sumários shortinhos, que expunham a nudez de pernas longilíneas, lisinhas, durinhas, reluzindo a musculatura de andarilhas. Os shortinhos empacotavam nádegas com glúteos bem torneados em formas cheias de lascívia. Nos dorsos, as barriguinhas nuas e os tops moldando tetas ainda resistentes à lei da gravidade.

“Rapaz…”

“Não é pro seu bico, não. Você só gosta das brancas azedas, toda emperiquitada com grifes. Não bote o olho na singeleza das minhas neguinhas. Kkkkkkkkkk…”. Soltou uma sonora gargalhada.

“E aí, coroa! Vai jogar hoje?” Indagou uma das garotas que tinha entrado no boteco para mercadejar suas rifas.

“Tome 10 pra 200. Meu amigo aqui também vai querer uma.”

Pagaram às meninas. E o papo foi retomado.

“Rapaz, que beleza, hein… Incrível a formosura dessas garotas. Mas me conte a sua história. O tempo tá passando e o cliente daqui a pouco chega lá no escritório”.

“Viu! O povo se vira para sobreviver. Diante da dificuldade de encontrarem emprego, essas meninas se viram para obter o dinheiro que vão gastar com suas vontades e necessidades. A minha história não tem nada de sociologia. Vamos pular esta parte.”

Novamente ele ficou embevecido ao lembrar do que contaria ao amigo. Ele já não era nenhum jovenzinho. Estava mais perto dos 60 que dos 50. Estava com 57 anos. No rosto dele, no entanto, as rugas pareciam se desmanchar ao relembrar a história.

“Então, a minha rifeira preferida não era nenhuma dessas. Devia ter a mesma faixa etária. Que menina simpática, comunicativa. Inteligente pra porra. E uma gata selvagem, despida de qualquer adereço. Natureza crua. Fiquei encantado na primeira abordagem, com aquela voz, aquele rostinho sapecamente pueril. E, pra matar o velho de vez, que mulherão! Uma Matilde Mastrangi mulata. Lembra? A das pornochanchadas era loura. A minha rifeira era da cor do pecado”.

“Quer dizer que o coroa ficou apaixonado pela jovem Matilde Mastrangi morena?”.

“Não deixava nunca de comprar a rifa na mão dela, que nunca deixava de aparecer no escritório que tenho em cima do açougue para me oferecer a sorte. Num tom de brincadeira, mas, por dentro, querendo muito, eu dizia: ‘Quando ganhar, eu quero você de prêmio’. Ela sorria marotamente. Pegava o dinheiro e entregava o bilhete”.

“Depois de velho, entrou numa de amor platônico? kkkkkk.”

“Fique nessa! Sou lá você que, no tempo da escola, ficava mandando poeminha anônimo para a bonitinha da sala e nunca chegou junto e se declarou. Vivia naquela punheta, enquanto a gente saia pra pegar graxeiras. Não, amigo! Eu jogara o barro. Se colasse, maravilha!”.

“Vacilei mesmo…Tempos depois, soube que os poemas a encantavam e ela era doida para saber quem os escrevia. Só você sabia que o autor era eu e conservou em segredo sempre. Quando fiquei sabendo que poderia ter me dado bem, o tempo já tinha estragado o encanto. Estávamos casados e ela não enchia mais meus olhos de desejo, como no passado”.

“Que pena… Voltando à minha rifeira, certo dia, ela me chegou toda tristonha. Não tinha vendido nenhum bilhete. Com a comissão da vendagem é que pagava suas coisas. Tinha um boleto a vencer naquele dia. Gastara a reserva que tinha para comprar remédios pra mãe. Estava com uma grana que recebera de um cliente e não pestanejei. Comprei todos os bilhetes à venda. Sei lá, deu uns mil reais. Os olhos lacrimosos dela brilharam. Reacendeu a alegria da garota, que me agradeceu bastante, entregou os bilhetes, me deu um beijo na testa e saiu correndo para pagar o boleto”.

“Hummmm, o bondoso! Kkkkkkkkkkk”.

“Pois é… No final do dia daquela quarta-feira, resolvi dar uma olhada no resultado da Loteria Federal. Não é que um dos bilhetes estava sorteado. Teria de volta toda a grana que gastei, mil reais. Era aquela velha história, ‘Deus tira com uma mão e devolve com a outra’. Não estava nem aí para crendices. Fui dormir cedo. No dia seguinte, decidi ir à delicatessen comprar um vinho. Estava sem nenhum em casa. Não é que repetinamente surge em minha frente a minha rifeira preferida. E como ela estava linda. Perdia o fôlego a cada curva de seu corpo que meus olhos percorriam”.

“Tudo bem? Você é um homem de sorte! Ganhou finalmente o prêmio. Tem gente lá no seu escritório?”.

“Me belisquei. Será que ainda estava dormindo, sonhando. Que naturalidade objetiva. Eu não fizera menção nenhuma ao prêmio que verdadeiramente eu almejava naquele momento. Não titubeei. Paguei a garrafa de vinho e fomos os dois para o escritório”.

“Sacou a azulzinha da carteira? Passou na farmácia antes de ir pra casa? Não vá me dizer que esqueceu e deu vexame”.

“Porra nenhuma. Estava com a muleta na carteira. Mas a dispensei. A cada gole de vinho, acompanhado de maior intimidade, o fervor que tomava conta do meu corpo prescindia de qualquer artifício. Era uma deusa da volúpia diante de mim. Beijos, toques, roçar de corpos que se desnudavam e revelavam uma avidez incomensurável por prazer. Transcendi todos os portais da realidade para mergulhar no leito de uma felicidade sublime…Tirei a sorte grande na rifa!”.

Pacheco Maia Filho é jornalista.




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